Fonte: Jornal da Unicamp
O sistema de educação superior brasileiro passou por sua mais importante reforma em 1968, que incorporou o princípio da integração entre ensino e pesquisa, tomando como referência a organização das universidades de pesquisa dos Estados Unidos, com seus departamentos e institutos de pesquisa, sistemas de crédito, professores doutores e alunos em tempo integral. Um dos resultados importantes desta reforma foi que, na medida em que a pesquisa científica se desenvolveu no país, ela se deu no interior de suas universidades. Ao tentar emular o sistema norte-americano, os reformadores não levaram em conta o fato de que as universidades de pesquisa naquele país eram somente uma parte de um amplo sistema de educação superior de massas, com milhares de instituições com outras características. Nos anos seguintes, o sistema brasileiro de educação superior também se expandiu, indo muito além da capacidade das universidades de pesquisa idealizadas na década de 60. Deste então, a legislação brasileira procurou se adaptar à nova realidade de um sistema complexo de instituições públicas e privadas, de ensino e pesquisa, presenciais e à distância, sem que, no entanto, houvesse uma reforma abrangente que desse conta da diversidade que se instalou.
O projeto “Pesquisa da Pesquisa e da Inovação”, conduzido pelo Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp, com apoio da Fapesp, tem por objetivo entender os diferentes contextos e modalidades de apoio à pesquisa científica e tecnológica no país. Parte deste trabalho consiste em compreender com maior profundidade como a educação superior no país vem se transformando, e o lugar que o ensino de graduação, os cursos de pós-graduação e a pesquisa ocupam neste sistema. Entre 2010 e 2020, o acesso à educação superior brasileira aumentou em cerca de 30%, de 6.6 para 9 milhões de estudantes, somando os matriculados em cursos de graduação e pós-graduação estrito senso. Não foi um crescimento homogêneo: o ensino superior brasileiro, como no resto do mundo, é fortemente diferenciado, com universidades públicas e privadas, grandes redes de ensino à distância, instituições seletivas e de acesso mais simples. Para melhor entender esta diferenciação, em um trabalho anterior, propusemos uma classificação das instituições de ensino de graduação e pós-graduação em nove tipos, tomando em consideração, sobretudo, o porte das instituições, em termos do número de alunos matriculados; sua natureza jurídica ou institucional; e o peso relativo de sua dedicação aos cursos de graduação em suas diferentes modalidades (bacharelado, licenciatura, cursos tecnológicos) e pós-graduação estrito senso (mestrados e doutorados).[1]
Para uma visão de conjunto, foi necessário, em um primeiro momento, unificar as bases de dados do Censo da Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), com informações referentes aos cursos de graduação, e da Capes, com informações referentes aos cursos de pós-graduação, tomando como referência o ano de 2018. Posteriormente, tivemos acesso ao conjunto de dados da Capes para o período de 2004 a 2020 e do INEP para o período de 2010 a 2020, organizados pela Fapesp. Como INEP e Capes não utilizam os mesmos códigos e critérios para identificar as entidades e organizar as informações (mantendo juntas ou separadas, sem critério uniforme, instituições e suas diferentes partes ou localidades) e como os microdados da Capes não foram submetidos a um tratamento de sistematização e limpeza apropriados, como os do INEP, foi necessário um trabalho minucioso de organização dos dados, incluindo a criação de um dicionário comum de entidades e uma série de decisões sobre agregação e eliminação de informações inconsistentes. A estes dois conjuntos de dados, acrescentamos as informações sobre publicações científicas oriundas do Web of Science e outros dados do INEP referentes ao fluxo de características socioeconômicas dos estudantes de graduação.
A integração destas diferentes bases de dados permite diversas análises sobre as características e a evolução recente do ensino superior brasileiro, que serão apresentadas em documentos de trabalho sucessivos.
Existem duas maneiras de desenvolver uma tipologia: por metodologias estatísticas, que permitem agrupar as entidades conforme suas semelhanças ou diferenças, e pelo uso de critérios mais ou menos arbitrários, mas apoiados na observação dos dados mais relevantes. Em um texto recente, Maria-Ligia Barbosa e colaboradores fizeram uma análise hierárquica de clusters dos principais componentes de um grande conjunto de dados das instituições de ensino superior brasileiras, a partir das informações do Censo da Educação Superior do INEP de 2019, que levou à identificação de quatro grupos: 1) faculdades privadas, de pequeno porte e inclusivas (35% da matrícula); 2) faculdades de pequeno porte com ênfase em formação vocacional e STEM (1.3% da matrícula); 3) grandes universidades privadas (40% da matrícula); e 4) grandes universidades públicas de orientação acadêmica (27% da matrícula).[2]
Para este projeto, também experimentamos diferentes técnicas de agrupamento, como, por exemplo, a análise de proximidade ilustrada no gráfico 1. É um gráfico tridimensional, que tem como principais vetores a proporção de alunos em cursos de pós-graduação, o tamanho das instituições, em número de alunos, e a proporção de alunos em cursos vocacionais, ou tecnológicos. Embora interessante, neste tipo de análise, o resultado depende do número de variáveis consideradas, não necessariamente incluindo dimensões importantes que conhecemos.
Mais promissor tem sido o uso intencional de algumas variáveis que consideramos estratégicas para melhor entender a diferenciação que vem ocorrendo no sistema. Estamos retomando, neste projeto, a classificação de nove tipos de instituições de ensino superior brasileiro, que tem como principais eixos o tamanho, a natureza jurídica (públicas, privadas e filantrópicas), a proporção de alunos em cursos de pós-graduação e a proporção de alunos em cursos curtos, tecnológicos ou vocacionais. O quadro 2, abaixo, apresenta a tipologia utilizada, com alguns indicadores relativos às características dos estudantes matriculados, para o ano de 2020, que variam de forma significativa entre os diferentes tipos. Ela permite distinguir com clareza diferentes tipos de instituições públicas e traz informações adicionais sobre instituições de pequeno porte voltadas para a pesquisa e pós-graduação, que as outras abordagens não identificam.
O acesso a dados de diferentes anos permite, ainda, ter uma visão inédita da evolução do ensino superior brasileiro, como no gráfico abaixo, no qual se pode observar que o crescimento foi quase que exclusivamente concentrado no primeiro tipo de instituição, as instituições privadas de grande porte, voltadas sobretudo para a educação à distância e noturna.
O mesmo tipo de análise pode ser feito a respeito da pós-graduação, podendo-se observar que 48.5% dos alunos de doutorado em 2020 estavam concentrados nas 13 instituições que fazem parte do grupo 2; e elas ainda concentravam 35% da produção de artigos de instituições brasileiras indexados no Web of Science (base de dados InCites) nos últimos dez anos.
Tal como já ocorre nos Estados Unidos e outros países, [3-4] a existência de uma base de dados integrada e em permanente atualização e de uma tipologia apropriada pode se tornar um instrumento poderoso para o conhecimento apropriado e aperfeiçoamento contínuo do sistema de educação superior em suas diversas dimensões.
* Simon Schwartzman é sociólogo, membro da Academia Brasileira de Ciências e pesquisador visitante do Instituto de Geociências da Unicamp
Esse texto é um artigo de opinião e não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[1] SCHWARTZMAN, S.; SILVA, R. L.; COELHO, R. R. Por uma tipologia do ensino superior brasileiro: teste de conceito. Estudos Avançados, v. 35, p. 153-186, 2021. ISSN 0103-4014.
[2] BARBOSA, M.-L. et al. Higher Education in Brazil: Institutional actions for the retention of students in public and private sectors. In: PINHEIRO, R.;BALBACHEVSKY, E., et al (Ed.). The impact of COVID-19 on the institutional fabric of higher education: Accelerating old patterns, imposing new dynamics, and changing rules?: Srpinger, 2023 (forthcoming).
[3] MCCORMICK, A. C. Classifying Higher Education Institutions: Lessons from the Carnegie Classification Clasificación de las instituciones de educación superior: lecciones de la Clasificación Carnegie. Pensamiento Educativo. Revista de Investigación: Educacional Latinoamericana, v. 50, p. 65-75, 2013
[4] VAN VUGHT, F. Mapping the higher education landscape: Towards a European classification of higher education. Springer Science & Business Media, 2009. ISBN 904812249X.