“Seria um futuro sem futuro, pois a educação implica a existência de um trabalho em comum num espaço público, implica uma relação humana marcada pelo imprevisto, pelas vivências e pelas emoções, implica um encontro entre professores e alunos mediado pelo conhecimento e pela cultura. Perder esta presença seria diminuir o alcance e as possibilidades da educação” (António Nóvoa).
Na epígrafe acima, o autor, em seu mais recente livro Escolas e professores: proteger, transformar e valorizar, contrapõe visões “fantásticas” de um futuro sem escolas e sem professores. Na visão destes futuristas, as escolas seriam substituídas por diferentes atividades e situações de aprendizagem, em casa e noutros lugares, através de momentos presenciais e virtuais. Os professores seriam substituídos por dispositivos tecnológicos, reforçados pela inteligência artificial.
Nesta perspectiva, Nóvoa critica três ilusões perigosas: a ilusão de que a educação está em todos os lugares e em todos os tempos, e que acontece “naturalmente” num conjunto de ambientes, sobretudo familiares e virtuais; a ilusão de que a escola, como ambiente físico, acabou e, a partir de agora, a educação terá lugar sobretudo “a distância”, com recurso a diferentes “orientadores” ou “facilitadores” das aprendizagens; e a ilusão de que a pedagogia, como conhecimento especializado dos professores, será substituída pelas tecnologias, “dopadas pela inteligência artificial”.
Durante a pandemia e na recente divulgação dos dados do Censo do Ensino Superior de 2020 deu-se, novamente, destaque justamente para a educação à distância devido ter tido mais matriculas de novos ingressantes nesta modalidade do que em cursos presenciais. Aqui no Rio Grande do Sul, as matrículas em curso em EAD, foram quase o dobro dos cursos presenciais. Torna-se necessário analisar o contexto social e econômico dos estudantes brasileiros para ousar apontar tendências ou conclusões.
Entre 2010 e 2020, o número de ingressos na educação superior variou negativamente 13,9% nos cursos de graduação presencial e nos cursos a distância aumentou 428,2%. Neste período o grau tecnológico registrou o maior crescimento em termos percentuais: 156,7%. Quase 70% das matrículas de cursos superiores de tecnologia (tecnólogos) já são a distância.
As matrículas em cursos de licenciatura presencial representam 40,7%, enquanto a distância são 59,3%. As vagas novas nos cursos presenciais alcançaram 37,6% enquanto nos cursos em EAD apenas 20%. Ou seja, há mais oferta e vagas ociosas na EAD do que nas presenciais.
Dados estatísticos indicam um panorama e uma tendência, mas não revelam as causas reais do fenômeno social e ou educacional.
No caso brasileiro, a procura por cursos à distância, aqui representados por tecnólogos e licenciaturas, podem indicar que são justamente os jovens estudantes mais carentes, trabalhadores de baixa que conseguem cursar e pagar cursos de curta duração – como os tecnólogos – e de menor custo na modalidade de EAD.
Inclusive, tal crescimento, coincide com a redução e extinção das políticas públicas de apoio ao financiamento estudantil nos últimos sete anos.
No ensino superior brasileiro, ilusões, mitos – enquanto meias-verdades –, mentiras, grifos e fantasias são difundidas e anunciadas como verdades há pelo menos duas décadas.
No livro, Mitos e meias-verdades: a educação superior sob ataque” (2021), Dilvo Ristoff, pesquisador e especialista no assunto, elenca e analisa os vários mitos difundidos, tais como:
– a quantidade é inimiga da qualidade;
– a inclusão de grupos historicamente excluídos só faz piorar a qualidade;
– a educação superior no mundo é majoritariamente privada;
– o ensino presencial é bom e o ensino a distância é ruim;
– a educação superior para todos levará ao desemprego profissionais altamente qualificados;
– a educação superior deve ser contida pois já temos alunos demais na graduação;
– a única função da universidade é profissionalizar;
– o custo do aluno é alto demais e o ensino remoto e a educação aberta são o país das maravilhas.
Entre várias diretrizes extraídas das análises, Dilvo Ristoff destaca que:
– qualidade para poucos não é qualidade, é privilegiamento de oligarquias;
– qualidade sem oportunidade igual para todos não é qualidade, é iniquidade;
– educação que imagina que o futuro será uma réplica do passado ou do presente não é educação de qualidade, é um equívoco grosseiro, uma traição imposta aos jovens;
– educação que não valorize a ciência não é educação de qualidade, é superstição;
– educação puramente instrumental não é educação de qualidade, é formação de bárbaros fortemente municiados;
– educação autoritária não é educação de qualidade, é sufocamento da criatividade e da autonomia docente, é deseducação para a cidadania;
– educação que não considere, ao mesmo tempo, os desafios locais, regionais e globais não pode ser de qualidade suficiente, pois não é possível salvar um país ou uma região em um planeta condenado à morte;
– educação que não faz uso das mais recentes tecnologias não pode ser de boa qualidade, pois subtrai dos jovens o direito de acesso às melhores oportunidades de aprendizagem de seu tempo e, portanto, não os prepara adequadamente para os desafios sociais e profissionais à frente;
– educação que imagina que a formação está concluída com a outorga do diploma não pode ser de boa qualidade, pois desconhece a necessidade de preparar os jovens para o aprendizado ao longo da vida num mundo em acelerada mudança;
– educação que não reconheça a possibilidade de múltiplas trajetórias de aprendizagem não pode ser de qualidade, pois nega não só as sensibilidades individuais, mas também as relações que os indivíduos têm com os inúmeros caminhos hoje disponíveis para o acesso ao conhecimento;
– educação que não capacite os seus docentes e jovens para o desenvolvimento das competências transversais necessárias para viver num mundo cada dia mais complexo não é educação de qualidade, é falta de percepção do óbvio ululante.
O professor Nelson Cardoso do Amaral (UFG), em estudo intitulado A hora da verdade para as universidades federais brasileiras: metas do PNE (2014-2024) e em 10 mitos a serem debatidos e desvendados, evidenciou e analisou onze mitos repetido no Brasil apresentando argumentos sólidos de sua insustentabilidade, dentre os quais destacamos:
– o “Brasil não aplica um volume adequado de recursos financeiros em todos os níveis de seu sistema educacional, da educação infantil à educação superior”, como afiram alguns formadores de opinião ao dizerem que o Brasil já aplica um volume adequado de recursos financeiros em todos os níveis de seu sistema educacional;
– pode-se afirmar também que, “nos períodos de grande expansão, a qualidade das universidades federais não diminuíram”, em contraposição aos que afirmam que nesses períodos diminuem a qualidade;
– não é verdade que “os estudantes das universidades federais não pertencem aos estratos de renda mais elevados da sociedade”, como defendem interessados que as instituições cobrem mensalidades de estudantes de alta renda;
– pode-se afirmar, ainda, que “os alunos das universidades federais brasileiras não são os mais caros do mundo (no sentido de gasto por estudante)”, como é difundido pelos opositores das universidades públicas;
– e, pode-se afirmar, segundo o pesquisador, a “educação básica não poderia melhorar muito se fossem transferidos recursos das universidades federais para esse nível educacional” e é evidente que a “grande parte das famílias brasileiras não poderiam pagar mensalidades nas universidades federais e, dessa forma, um substancial volume de recursos financeiros não poderia ser incorporado a seus orçamentos”, diferentemente do que é propagado.
Essas questões precisam ser desmistificadas e pautadas na ordem do dia do processo político. Este precioso bem público que é a educação pública, básica e superior, deve ser assumido pelo estado e pela sociedade com maior seriedade e honestidade. Continuamos negando a universalização à educação básica e o acesso ao ensino superior de qualidade.
Portanto, estamos diante de muitos desafios, alguns mais antigos e outros que já se anunciam na esquina do próximo ano.
Praticamente 90% mas matrículas da educação básica são públicas e 90% do conhecimento científico é produzidos em nossas universidades por jovens pesquisadores que dependem de bolsas que estão, desde 2013, sem reajuste e atingem o menor valor da história.
Aliás, políticas públicas de ensino e pesquisa no Brasil, mesmo no contexto da pandemia do covid-19, nunca foram prioridade dos últimos dois governos federais que, inclusive, nomearam os piores ministros da educação de nossa história.
Na obra The transformative humanities, Mikhail Epstein (2012) sustenta que a universidade, vale para escola, não é um centro comercial, uma loja para clientes de diplomas e de profissões e, também, não é uma rede de informações ou um supermercado intelectual: a universidade é uma instituição humanista e o seu propósito é educar humanos por humanos para o bem da humanidade.
O que é verdade para a universidade é verdade para toda a educação.