A pandemia do novo coronavírus escancarou um dilema em educadores preocupados com a qualidade e segurança do ensino, oferecido principalmente na educação básica: como defender o distanciamento social e, ao mesmo tempo, valorizar práticas que não transformem alunos e pais em reféns da tecnologia?
Por um lado, manter as atividades suspensas e pensar no ensino a distância é o mais seguro neste momento; mas, por outro, abre caminho para a ascensão de propostas vinculadas ao viés financeiro das instituições, já que tecnologia e as plataformas digitais envolvem investimentos quase sempre vultuosos. Um exemplo: a pandemia colocou no centro do debate o grupo Eleva Educação, do bilionário Jorge Paulo Lemann.
O conglomerado, cujo controle acionário está nas mãos do fundo Gera Ventura – que tem Lemann como único dono –, estuda a possibilidade de realizar uma IPO (oferta da ações em bolsa de valores para capitalização) de até R$ 1,5 bilhão como forma de se preparar para o futuro da educação a distância. Criado em 2013, o grupo tem hoje 80 mil alunos em 130 escolas próprias espalhadas em 11 estados e Distrito Federal. Já é a maior holding de ensino básico no país – e segue crescendo.
O pulo do gato de Lemann – Pode parecer pouco diante do vasto universo de crianças e adolescentes em idade escolar no Brasil, mas o pulo do gato de Lemann nem é exatamente esse: além do contingente de escolas próprias, o Eleva tem cerca de 150 mil alunos que estudam em “escolas parceiras” usando o sistema Plataforma de Ensino. O método próprio usa termos como “treinamento”, “benchmark”, “marca” e “meritocracia” para reforçar a tese de um ensino conteudista e com foco em formação de lideranças. E a estratégia empresarial segue a cartilha das universidades mercantilistas: aquisições.
“Lemann está investindo em escolas de alta performance, com educação bilíngue em tempo integral e direcionadas à elite do país, com objetivos políticos, para a formação de lideranças políticas em nível nacional”, sustenta o professor Sérgio Martins, da PUCRJ. Presente nos principais mercados brasileiros, como Rio, São Paulo, Brasília e Minas, o grupo cobra cerca de R$ 5 mil de mensalidade e emprega consultoras – ao invés de pedagogas – para formular suas políticas.
O pedagogo Roberto Leher, reitor da UFRJ, associa a movimentação do grupo Eleva à agenda neoliberal brasileira, especialmente no que se refere às distintas formas de se encarar a inclusão nos meios digitais. Para ele, trata-se de um projeto de educação básica em que a classe dominante define forma e conteúdo do processo formativo das crianças e dos jovens brasileiros.
“Vários dos grandes grupos econômicos do país, bancos, empreiteiras, setores do agronegócio e da mineração, perceberam quanto é estratégico ditar os rumos da educação que surgirá no Brasil pós-pandemia. E fazem isso como uma política de classe, atuam como classe que tem objetivos estruturados, um projeto, concepções claras de formação, de modo a converter o conjunto das crianças e dos jovens em capital humano”, observa Leher.
Controle de mercado e agenda liberal – Nunca é demais lembrar que Lemann, além de dono de escolas, também controla marcas como Burger King, AB Imbev (maior conglomerado de cervejarias do mundo) e Lojas Americanas. Desde o final dos anos 1990 Lemann investe em formação de lideranças políticas por meio da Fundação Estudar. Em 2018, o empresário ajudou a eleger cinco ex-bolsistas para a Câmara dos Deputados.
O gerente de expansões do grupo, Leandro Ballarin, disse por e-mail à reportagem do Extra Classe que o Eleva sempre está atento a “marcas que possam agregar” conteúdo à proposta pedagógica do grupo. “Esse é um mercado bastante pulverizado e que certamente apresenta boas oportunidades. O mercado, atualmente, está passando por um momento de consolidação e certamente iremos continuar com nossa política de aquisições”, sustenta.
Convertendo pessoas em capital – Nesse sentido, a tecnologia joga um papel estratégico na hora de converter pessoas em capital. A diretora da Associação Brasileira de Ensino a Distância (Abed), Lana Paula Crivelaro, considera um erro essa aposta. “EaD não é apenas tecnologia digital, computador de última geração. O ensino a distância pode e deve se dar também com materiais analógicos, ainda mais em nosso cenário de desigualdade, e, principalmente, com engajamento entre escola, estudantes e famílias”, diz a especialista.
Crivelaro defende a manutenção do distanciamento, mas com formas “criativas” para enfrentar a ausência das aulas presenciais. “Muitas professoras e professores, por falta de orientação, estão só transpondo suas aulas expositivas em vídeo. O aluno presencial já não aguenta mais esse modelo, imagina a distância. Hoje eles querem construir seu conhecimento. E os professores precisam se comportar como mediadores, e não como expositores de conhecimento”, afirma.
Também acha que, ao invés de centrar a discussão em ter ou não acesso à internet, em ter ou não equipamentos de última geração, as escolas deveriam aproveitar o momento para reunir conteúdos diversos (“matemática com história, por exemplo”), propondo questões interdisciplinares com métodos interativos por telefone, como programas de mensagens.
Ensino híbrido ganha forças – “Esses aplicativos podem ser usados para o compartilhamento de orientações sobre atividades educativas, vídeos gravados por professores, contatos com pais. Existem muitas opções para que todas as crianças, independentemente da faixa etária e de terem ou não um computador, acessem educação a distância. Mas é preciso criatividade, organização e colaboração neste momento de crise”, argumenta.
É nesse cenário que ganha força o conceito de ensino híbrido, que vem sendo paulatinamente apropriado por propostas de cunho eminentemente tecnológico – como a Eleva Educação. Por esse modelo, a sala de aula passa a ser um complemento das atividades on-line: boa parte dos conteúdos é transmitida por meios eletrônicos, o que significa um desafio extra especialmente na rede pública de ensino.
Tecnologia como diferencial – O coordenador da plataforma Trilhas Pedagógicas EaD, Matheus Borré, aposta na tecnologia como diferencial para a adoção do ensino híbrido. “A pandemia escancarou uma demanda que já era discutida há muito tempo, de readaptar as escolas, na volta do ensino presencial, a um novo cenário, mais próximo da tecnologia e das formas de comunicação dos alunos. O assunto tornou-se urgente, embora de forma geral esses processos de renovação já fossem uma tendência”, defende. O Trilhas é uma plataforma ligada ao método de ensino desenvolvido pela Eleva.
O modelo apresenta quatro métodos de hibridismo que podem ser adotados, entre eles a sala de aula invertida, conceito no qual os alunos se dedicam a determinados temas em casa ou presencialmente, com a ajuda da tecnologia, e as discussões e exercícios são realizados em sala de aula. Há também estratégias de “rotação”: o professor monta estações de trabalho ou laboratórios com diferentes objetivos de aprendizado e os alunos vão passando por cada posto. É possível realizar adaptações para que os estudantes concentrem-se em assuntos que têm menos facilidade.
VANTAGEM COMPETITIVA – Segundo Borré, instituições privadas de ensino que contam com mais autonomia em sua gestão podem usar essa “vantagem competitiva” para testar, verificar e comprovar processos e ações e, em seguida, “compartilhar os resultados com o ensino público”. Ou seja, a estratégia é compatibilizar a rede pública com o formato digital do modelo privado de ensino. “É uma colaboração entre os dois sistemas”, defende.
Perfeição inovadora ou oportunidade de mercado – Mas a anunciada “perfeição inovadora” do ensino híbrido, na visão da doutora em Educação pela PUCSP, Katya Braghini, traz em si a ação de um “truste”, que passa a qualificar o que é boa e má educação. Para a especialista, trata-se de mais um mercado em ascensão que, diante da pandemia e da supressão emergencial do ensino presencial, tem ganhado força rapidamente nos planejamentos pós-pandemia no Brasil.
“Empresas, coligadas ou não, se associam para oferecer soluções essenciais ao funcionamento da educação híbrida e, junto a esse primeiro movimento de cartel, são criadas outras necessidades pedagógicas: ferramentas de aprendizagem, tutoriais, aulas pré-moldadas, aplicativos de smartphones, entre outros. A compatibilidade entre produtos se torna uma necessidade pedagógica e pode ser vista em vários exemplos atuais que se amparam nos discursos dessa nova educação, seja apresentada na forma escolarizada ou não”, critica.
A especialista identifica uma preparação de terreno para o que chama de “discursos salvadores” da educação. “São receitas prontas de sucesso, no melhor do estilo fast-food. Nesse caso, a importância do professor atuante e reflexivo é cada vez mais diminuída, assim como a importância do planejamento de aula. Automatiza-se o processo de ensino e atribui-se o papel de aprender única e exclusivamente ao aluno já que todas as ferramentas foram disponibilizadas a ele. A impressão que fica é que basta a escola se equipar e todos seguirem o método escolhido para que a educação avance”, completa.
(*) Flavio Ilha é jornalista. Contribui regularmente com o jornal Extra Classe, onde este artigo foi originalmente publicado.